terça-feira, 3 de novembro de 2009
O Ministério das Relações Exteriores atravessou todo o período da ditadura militar como se vivéssemos no melhor dos mundos, enquanto perseguia diplomatas - intelectuais como Antonio Houaiss, Vinícius de Morais, João Cabral de Melo Neto entre muitos. E prestou-se a papéis indignos mesmo antes do golpe de 1964. Vale a pena lembrar tais coisas embora neste momento o Itamaraty, com o ministro Celso Amorim à frente, conduza com sucesso uma política externa exemplar. O artigo é de Argemiro Ferreira.
Argemiro Ferreira
Há uma particularidade insólita sobre nosso ministério das Relações Exteriores, o velho Itamaraty. Sempre desfrutou de boa imagem, menos por merecê-la do que pela prática nefasta, talvez de muitos anos, de varrer a sujeira para debaixo do tapete. Atravessou, por exemplo, todo o período da ditadura militar como se vivéssemos no melhor dos mundos, enquanto perseguia diplomatas - intelectuais como Antonio Houaiss, Vinícius de Morais, João Cabral de Melo Neto entre muitos. E prestou-se a papéis indignos mesmo antes do golpe de 1964.
Vale a pena lembrar tais coisas embora neste momento o Itamaraty, com o ministro Celso Amorim à frente, conduza com sucesso uma política externa exemplar. O que sugere revisitar a questão é a iniciativa de uma cubana de Miami, 76 anos de idade, notória pelo detalhe de ser irmã de Fidel e Raul Castro, de revelar num prolixo livro de memórias (Fidel y Raúl, Mis Hermanos – La Historia Secreta, 432 páginas), ter sido agente da CIA, central de espionagem dos EUA, graças à diplomacia brasileira.
Juanita Castro não fez a revelação nesses termos, mas o que escreveu (ou o que escreveu para ela a co-autora mexicana Maria Antonieta Collins, especialista em livros de auto-ajuda que ensinam dietas, receitas, como lidar com ex-maridos, livrar-se do vício do cartão de crédito, etc) permite chegar a tal conclusão. Sem atribuir explicitiamente a carreira de espiã à nossa diplomacia, ela diz ter sido recrutada para a atividade pouco nobre através da mulher do embaixador Vasco Leitão da Cunha, que então servia em Havana.
O péssimo exemplo da embaixatriz
É conveniente esclarecer que, entre outras coisas, agora Juanita se diz traída duas vezes - uma pelo irmão Fidel, a outra pela CIA e os EUA. No primeiro caso, a gente entende: como governante Fidel optou por cuidar dos problemas do país, não dos interesses da família. Quanto ao país que a recebeu, queixou-se de que a CIA no governo do presidente Nixon, eleito em 1968, pediu a ela para mudar o discurso e sustar os ataques a Cuba e Fidel - ou seja, dizer o contrário do que dizia até então.
Mas voltemos à diplomacia. Como chefe da missão do Brasil, o embaixador Leitão da Cunha recebera Juanita como asilada em 1958, ainda no governo JK. Ela alegara correr risco por ser irmã de Fidel, então líder dos guerrilheiros que lutavam contra o ditador Fulgencio Batista. Vitoriosa a revolução no primeiro dia de 1959, ela deixou a embaixada. E em 1961, depois do fracasso (em abril) da invasão da CIA (na baía dos Porcos) a embaixatriz Virginia Leitão, ciente da atividade dela contra o governo revolucionário do irmão, chamou-a para uma conversa. E sugeriu que passasse a colaborar “com uns amigos que conhecem seu trabalho (contra o governo) e querem ajudá-la”.
De acordo com a versão, Virginia encarregou-se de promover o encontro de Juanita com um dos “amigos”, Tony Sforza, então usando o codinome “Enrique”, depois de ter atuado um tempo sob o disfarce de jogador e frequentador de cassinos, com o codinome “Frank Stevens”. Logo depois Juanita passava a operar como agente da CIA em território cubano, com o codinome “Donna”. A se acreditar no livro, durante quase três anos (até 1964, quando foi para os EUA), ela “protegia”, inclusive escondendo em sua casa, críticos e opositores da revolução.
As relações promíscuas de diplomatas
Daí em diante Juanita foi usada permanentemente pela CIA como arma de propaganda. A ligação dela com a espionagem americana não era segredo. Já em 1975, no seu livro Inside the Company - CIA Diary, o ex-espião Philip Agee, citou-a como “agente de propaganda da CIA”. E num livro póstumo de 2005, Spymaster - My Life in the CIA, o célebre Ted Schackley, controvertido ex-chefe de operações da agência, revelou publicamente, pela primeira vez, que o contato da CIA com Juanita Castro tinha sido feito através da embaixatriz brasileira Virginia Leitão da Cunha.
Difícil é entender porque o fato ainda era ocultado no Brasil e porque não se tenta saber mais sobre as relações promíscuas de diplomatas e gente direta ou indiretamente ligada ao Itamaraty, dentro e fora do país? O mesmo livro que fizera (em 1975) a primeira referência à relação de Juanita com a CIA também registrara que no Uruguai, na década de 1960, o embaixador brasileiro Manuel Pio Corrêa atuara como espião da CIA.
Mas só em julho de 2007, graças a série de reportagens do Correio Braziliense durante quatro dias seguidos, o país soube a extensão do papel de Corrêa. Depois de passar pelo Uruguai e pela Argentina ele foi premiado com a secretaria geral do Itamaraty e usou o cargo - e os superpoderes recebidos no governo Castello Branco - para criar insólita máquina de espionagem no ministério, com alcance mundial. Um certo Centro de Informações do Exterior (CIEX) dedicava-se a monitorar em toda parte, com a ajuda de nossos diplomatas, os exilados brasileiros e críticos do regime militar.
D. Hélder e a espionagem de Pio Corrêa
Por alguma razão desconhecida a grande mídia do resto do país, cúmplice do golpe de 1964 e beneficiária da ditadura durante 20 anos, preferiu praticamente ignorar o conteúdo daquelas reportagens. Mas um dos efeitos conspícuos da ação do CIEX pode ter sido a campanha mundial orquestrada pela diplomacia brasileira para impedir a concessão do prêmio Nobel da Paz ao arcebispo Hélder Câmara, que denunciava torturas e abusos contra os direitos humanos no Brasil. A maquinação torpe devia ser hoje motivo de estudo e repúdio na formação dos futuros diplomatas.
Mas os segredos do Itamaraty, ao contrário, parecem intocáveis. No seu livro de memórias, O mundo em que vivi, o próprio Pio Corrêa, ao negar perseguição a Vinícius de Moraes (que se desligou, alega ele, num acordo amistoso) vangloriou-se de ter demitido “pederastas”, “vagabundos” e “bêbados”. Houaiss e João Cabral já eram perseguidos antes da ditadura, como alvos de campanha macarthista liderada, ainda no início da guerra fria, pela Tribuna da Imprensa ao tempo de Carlos Lacerda, que os denunciava como subversivos em manchetes de primeira página.
Seria no mínimo saudável arejar esse passado recente e não perpetuar o sigilo. O Itamaraty foi suspeito antes de ocultar seus erros e ainda os gastos elevados, como se fosse uma caixa preta. O fato de alguém como Virginia Leitão da Cunha - cujo marido ocupou altos cargos, foi até ministro do Exterior da ditadura - ter atuado como espiã a serviço de potência estrangeira, dentro da embaixada brasileira, e recrutado agente para serviço de espionagem de outro país, é vergonha que tem de ser exposta à execração pública, para o exemplo nunca ser seguido. E se deixar de ser feita coisa parecida em relação aos Pio Corrêa da vida, a impunidade funcionará como estímulo no futuro ao mesmo comportamento deprimente - que revela subserviência e rebaixa a qualidade de nossa diplomacia.
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